Quando faltavam três dias para completar um mês desde que um juiz de
Brasília impôs a inacreditável censura prévia a este jornal -
impedindo-o de cumprir sua missão de levar informações que deveriam
ser públicas à sociedade (que tem o direito de acesso a elas) -, o
Judiciário envolveu-se em mais um desses episódios que o tornam parte
decisiva da atual crise institucional do País. E o fez com uma
sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) - por maioria escassa - que
retira mais um direito dos cidadãos, o do sigilo em suas contas
bancárias, e na prática dá a autoridades livre acesso a elas, que lhes
deveria ser vedado. E ainda com a diferença de entender que o único
culpado é o dirigente da instituição bancária que violou o sigilo; um
ministro (na época do incidente) e seu assessor de Comunicação, a quem
as informações sigilosas foram levadas, de nada têm culpa. Com isso o
ex-ministro não precisa ser processado e pode candidatar-se a altos
cargos públicos, embora ainda responda a uma dezena de processos por
improbidade administrativa.
Não é o primeiro imbróglio que leva o Judiciário à frente do palco
onde já se encontram o Legislativo e o Executivo. O primeiro, com
escândalo atrás de escândalo, tem 30 dos 81 senadores respondendo a
processos por crimes de natureza pública, ao lado de 165 deputados
federais processados pelas mesmas razões. O segundo, no jogo da
manutenção do poder, alia-se a inimigos que denunciava ontem, fecha os
olhos ao que for preciso. Mas tudo configura um quadro que leva a
temer rupturas indesejáveis, dado o horror que vai tomando conta de
boa parte da sociedade.
Censura à comunicação nos termos em que foi decretada por um juiz leva
a memória de volta aos tempos mais duros do regime militar, em que até
porteiros de Ministérios se davam ao desplante de, por telefone,
ordenar a órgãos de comunicação que não divulgassem este ou aquele
fato. Sem apelação. Ainda com muitos textos em seus arquivos, todos
simplesmente vedados por inteiro com um enorme X atravessando as
páginas, o autor destas linhas se lembra de um episódio muito
demonstrativo da prepotência, na época em que dirigia a redação do
Globo Repórter (da Rede Globo), na década de 70. Ali, os roteiros
finais e os programas gravados tinham de ser vistos e aprovados por
censores da Polícia Federal, que impunham cortes parciais ou totais,
sem nem sequer justificar a decisão. Foi assim com programas sobre as
invasões no Pontal do Paranapanema, sobre o desaparecimento de Sete
Quedas, sobre riscos da energia nuclear, sobre poluição em Salvador e
em rios que deságuam em sua baía, sobre a vida de um delinquente
juvenil - Wilsinho Galiléia - morto aos 17 anos pela polícia (programa
dirigido por João Batista Andrade).
Talvez o caso mais aberrante tenha sido o de um documentário adaptado
da TV inglesa e ali já exibido, sobre pigmeus africanos. A censora que
assistia à versão final determinou a este escriba que cortasse toda a
sequência mais bonita e emocionante, que documentava com muita
delicadeza o nascimento de um pigmeu, sua saída do ventre da mãe. E
ante a pergunta sobre as razões desse corte, limitou-se a censora a
responder: "Porque uma criança não pode ver isso, uma mulher nua dando
à luz." Ante o argumento de que as crianças do Rio de Janeiro (onde
estávamos) e de outros lugares viam todos os dias mulheres de biquíni
e "fio dental" nas praias, praticamente nuas, insistiu: "Mas é
imoral." Um terceiro argumento - "é inacreditável que a senhora,
mulher, considere imoral o momento mais bonito da vida das mulheres" -
de nada adiantou, a censora foi categórica: "Corta!" E cortada foi
toda a sequência.
Estaremos nos aproximando de tempos semelhantes, e não apenas por
causa de censura prévia à comunicação, de um lado, e liberalidade
inaceitável para poderosos? Que dizer do quadro da Justiça no País,
que a toda hora volta a ser objeto de noticiário, por causa de
episódios extremos?
Quando escreveu o capítulo A conquista dos direitos e o acesso à
Justiça para o Relatório do Desenvolvimento Humano no Brasil 1996 (do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o autor destas
linhas documentou na Justiça brasileira um quadro preocupante: 25% dos
cargos de juiz não preenchidos, processos acumulados às centenas de
milhares em todos os graus, a cidadania "em boa parte um atributo de
apenas uma parte da população; em amplas áreas a exclusão social não
permite sequer o reconhecimento dos direitos fundamentais, muito menos
o acesso à Justiça" (será que o caseiro Francenildo, que teve seu
sigilo bancário violado, aí se reconheceria?).
Seria outro o quadro hoje? O noticiário das últimas semanas informa
que há 45 milhões de processos à espera de julgamento na Justiça. Só
em 2008 deram entrada 70,1 milhões de ações novas; em 2007 haviam sido
67,7 milhões. E o estoque crescendo.
A garantia do reconhecimento dos direitos do cidadão inscritos na
Constituição é um dos pressupostos da democracia. Mas quando não pode
contar com a Justiça, a quem o cidadão recorrerá? À força, correndo
riscos? E se a isso se agrega a descrença nos outros Poderes da
República, como ocorre agora com parte dos cidadãos?
Teremos de repensar esse quadro institucional, inclusive para escrever
na Constituição que a informação é um bem da sociedade e o acesso a
ela, um pressuposto da democracia ("quem tem mais informação tem mais
poder", costuma-se dizer). A experiência da censura no período militar
mostrou à exaustão os males a que se submete a sociedade. Não podemos
chegar a outra situação terminal. Mas é fundamental que a sociedade
seja capaz de formular os caminhos reparadores. É preciso repetir e
repetir que apenas a "retórica da indignação" que presenciamos hoje,
sozinha, a nada leva. É decisivo fazer chegar ao mundo da política as
propostas da sociedade para mudar os nossos rumos.
Washington Novaes é jornalista
E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Artigo publicado na pág. 2 do Jornal O Estado de SP